Pintores do Século de Ouro em Celorico da Beira e Linhares
Três dos maiores artistas do século XVI, dois deles portugueses e um flamengo, trabalharam para igrejas do actual concelho de Celorico da Beira. Outros pintores e escultores do mesmo século, aqui deixaram testemunho da sua passagem, mas infelizmente carecemos de elementos de identificação.
Por outro lado, numerosas obras de grande valor têm desaparecido, geralmente negociadas por gente sem escrúpulos, que aproveita a ignorância do povo.
Vasco Fernandes teve oficina em Viseu, no século XVI. Ali viveu de 1502 a 1505 e mais tarde, depois de 1540.
Trabalhou em Lamego, desde 1506 a 1511 e em Lisboa de 1513 a 1515. Em 1535 assinala-se a passagem por Lisboa.
Atribuem muitos quadros a este artista, tantos que toda a sua vida não chegaria para os fazer. Por esta razão passou a distinguir-se entre o trabalho do artista e o da oficina, onde ele teria dado só os retoques fundamentais. Distingue-se também esta da Escola. Assim mesmo, a polémica em curso de Vasco Fernandes, ou Grão Vasco II, mantém-se. O retábulo de Lamego, o tríptico do Museu Nacional de Arte Antiga, onde se lê a assinatura V. F. e o quadro Pentecoste, de Coimbra, assinado Velascus, tem servido de comparação na identificação dos seus trabalhos.
Os retábulos da Sé de Viseu, cujo S. Pedro é muito semelhante ao da Igreja de Tarouca, não obtiveram o consenso dos críticos quanto a atribuição a Grão Vasco, embora cada vez se fortaleça mais a tese da autoria daquele pintor.
Na Igreja Matriz de Linhares há três Tábuas em castanho, madeira que é muito característica da pintura portuguesa, representando a Anunciação, a Adoração dos Magos e o Descimento da Cruz. Segundo o Prof. Reis Santos seriam provenientes de um políptico. As suas medidas andam à volta de 1,40×0,80 m.
A identificação deve-se a Luís Reis Santos, que, à volta de 1940, publicou na Revista Altitude (editada na Guarda), uma nota sobre estes quadros.
A Escola de Grão Vasco teve larga representação na Beira, influenciando artistas posteriores, especialmente de arte popular. Vasco Fernandes reúne na sua arte as qualidades dos beirões: sinceridade, rudeza e um sentido profundamente humano.
Frei Carlos foi um pintor flamengo que trabalhou para o Santuário da pequena aldeia de Açores, no concelho de Celorico da Beira. A ele se deve um magnífico quadro pintado sobre madeira, que actualmente se encontra no Museu Regional da Guarda e representa a Adoração dos Magos. Este quadro tem muito interesse e pode considerar-se peça única de iconografia histórica daquele período, pois, nos cantos superiores, apresenta cenas dos supostos milagres da Senhora dos Açores.
Frei Carlos vem para Portugal como pintor e aqui trabalhou durante a primeira metade do século XVI, acabando por fazer profissão de fé na Ordem dos Frades Jerónimos, no convento do Espinheiro (Évora), em 12 de Abril de 1517.
Pouco depois transferiu-se para o convento de Santa Maria da Costa, em Guimarães. Dali saiu para o convento do Mato, em Alenquer, onde faleceu.
Não sabemos a data em que satisfez a encomenda da Igreja de Açores, mas é natural que tenha sido em período anterior à conversão.
O seu estilo é o da escola flamenga, de Bruges, com características que o situam entre os primitivos. O seu traço é muito correcto e a composição revela sensibilidade e harmonia cromática.
No Museu Nacional de Arte Antiga, de Lisboa, há quadros deste grande mestre, provenientes dos mosteiros do Espinheiro e de Belém. Também, além do Museu Regional da Guarda, o Museu Alberto Sampaio, de Guimarães, expõe quadros de Frei Carlos. Obras do artista se encontram em museus estrangeiros.
É natural que este grande pintor tenha mais Tábuas nesta região. Infelizmente, não as conhecemos. Ao longo dos últimos decénios muitas obras de arte sacra, existentes nas Igrejas do distrito da Guarda, foram retiradas e negociadas, sem que se saiba o destino. A ganância e a estupidez não impediram o seu desaparecimento.
Outro grande pintor que trabalhou para Celorico da Beira e pouco conhecido, foi Gaspar Dias. Terá nascido por volta de 1520. Os seus principais trabalhos foram executados entre 1560 e 1590. Foi pintor oficial da Casa da Mina e da Casa da Índia.
A sua categoria era tal que foi examinador de pintores. O seu aprendizado teria sido feito na Itália, onde foi bolseiro régio. A ele se deve a substituição da influência francesa e da flamenga pela italiana, em Portugal.
A principal obra de Gaspar Dias encontra-se na Igreja de S. Roque (Visão de S. Roque). Também lhe atribuem uma Crucificação e uma Ressurreição encomendadas pelo Mosteiro de Belém, mas que desapareceram.
É um pintor maneirista, com cores vivas, servidas pelo jogo de luzes e sombras sobre fundo clássico, ao gosto italiano.
Na Igreja de Santa Maria de Celorico existiu até há poucos anos um painel deste grande artista, painel extremamente raro, pois, como referimos, são poucos os seus trabalhos hoje conhecidos.
Há uma notícia descritiva feita em princípios do século XIX pelo presbítero Luís Duarte Vilela da Silva do quadro da Igreja de Santa Maria de Celorico da Beira, que a seguir se transcreve:
— «Em graça dos amadores de uma arte, que é um tanto mais admirável, quanto ela sabe roubar a natureza suas perfeições, e de que todos os homens dedicados, e as Nações mais cultas fazem a maior estima, e apreço, eu não devo esquecer um painel antiquíssimo, que se acha dentro desta Paróquia no altar do Menino Deus e é a Ciscuncisão do Senhor, obra de Gaspar Dias, contemporãneo de Grão Vasco e discípulo de Miguel Ângelo Bonarota.
Este painel é um milagre da arte: ali há suavidade de pincel; todas as figuras, que formam aquele todo, todas têm vistas de expressão: o colorido é admirável, (parece de Rubens) e em todas as suas perfeições bem mostra que seu autor possuiu a Poética da sua arte em grau sublime: qualidades estas porque Gaspar Dias merece ser chamado o Rafael Portugues que muito fazem sobressair o merecimento de Vasco, Pedro Perugino, Reinoso, Avelar e outros grandes artistas, que no doirado e felicíssimo governo de D. Manuel e D. Joao III tanto acreditaram a Nação.
Se tivessemos mais cuidado em estender e perpetuar a memória dos grandes homens, que em Portugal tem ilustrado as Artes e as Ciências, as suas obras teriam maior veneração e mais respeito».
Este quadro ainda existia há poucos anos naquela Igreja. Manuel Ramos de Oliveira na sua monografia de Celorico da Beira, publicada em 1939, refere-se-lhe na p. 90, esclarecendo que se encontra bem acondicionado na Sacristia, onde pode ser admirado.
Santana Dionísio, no Guia de Portugal (edição da Fundação C. Gulbenkian), publicado a volta de 1960, refere-se à beleza desta tábua, atribuída a Gaspar Dias e exposta na Sacristia. (p. 877). Quem nos sabe dizer onde esta este quadro de incalculável valor?
Em outras Igrejas do concelho de Celorico há tábuas deste período. A mais importante que conhecemos é o retábulo da Sacristia da Igreja da Velosa. Trata-se de uma Anunciação, no estilo da escola portuguesa quinhentista. Uma legenda traduz em latim a mensagem do anjo: «Avé Maria, Gracia plena». Na composição predomina o dourado. Esta magnifica pintura tem o mérito de não estar repintada, o que é raro. Está muito bem conservada. Este retábulo foi para aqui transferido da capela de S. Sebastião, que existia próxima desta aldeia, na Tapada das Freiras de Santa Clara, que pertenciam ao Convento de Santa Clara da Guarda, e aqui tinham um ermitério.
A sacristia é do século XVIII. Na altura do Santo Prior (1776) deve ter sido feita a transferência do retábulo do arcaz e do Cristo do Altar-Mor da capela das freiras para a Igreja da Velosa.
Há também alguns quadros quinhentistas na Misericórdia de Celorico da Beira. Um deles representa o Enterro de Jesus, discutindo-se a sua autoria. Augusto Filipe Simões, em Escritores Diversos, citado por Ramos de Oliveira diz que uns atribuem este quadro a Grão Vasco e outros a Gaspar Dias.
Na sacristia da igreja da Carvalheda existe um tríptico de madeira muito arruinado, com a pintura quase totalmente destruída, excepto uma das folhas, que representa uma figura de canto. Parece-nos trabalho dos finais do séc. XVI, começos do XVII. A humidade deve ter sido o principal responsável pela destruição desta obra de arte.